Texto: Giovanna Consentini
Fotos: Fernanda Frazão
Filme: André D'Elia
1 de julho de 2019
“A minha família é todo esse povo que está em roda de nós.” Assim dona Deusarina inicia nossa conversa embaixo de um dos muitos jambeiros da comunidade do Jauary. Naquela roda, há moradores das diversas comunidades quilombolas que povoam as margens do rio Erepecuru, no oeste paraense. Juntos, os comunitários do Poço Fundo, Acapu, Jarauacá, Varre Vento, Boa Vista Cuminã, Monte dos Oliveiras, Santa Rita, Jauary, Araçá, Espírito Santo, São Joaquim e Pancada formam o território quilombola do Erepecuru e detêm o direito coletivo a 218 mil hectares de terras desde 1998.
Apesar da titulação recente, registros históricos indicam que os quilombolas chegaram àquela região há muito tempo. São as histórias dos moradores mais antigos, os Filhos do Erepecuru, que mantêm essa memória viva. Um desses filhos é Daniel de Souza, o seu Daniel. Ele conta que após a abolição seus antepassados começaram a descer o rio e povoar a parte “mansa” abaixo das cachoeiras, algo bem parecido com o que aconteceu com seus parentes do rio Trombetas. Liderança quilombola desde os anos 1970, Daniel participou ativamente da primeira titulação de terra quilombola no Brasil, no território vizinho do Boa Vista. O reconhecimento de Boa Vista teve um efeito dominó e ajudou na titulação de outras áreas quilombolas na região. “Para nós, a terra já era nossa porque nós estávamos ali há quase 200 anos e o governo que tinha que dar o título”, relembra Daniel.
Hoje, seu Daniel é membro do conselho diretor das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará (Malungu) e já viajou o país auxiliando outras comunidades quilombolas a lutarem por seus direitos. Nascido e criado na comunidade do Jauary, Daniel e outros filhos do Erepecuru sabem valorizar esse senso de união entre seus conterrâneos. Segundo ele, isso vem de muito tempo atrás, do tempo dos “barracão de pedras”, que os mais velhos ainda lembram com nostalgia.
O barracão trata-se de uma formação rochosa à margem do rio que servia de esconderijo para fugitivos. Naquele lugar, de onde só se chega de barco, altos paredões de pedra formam um abrigo natural onde as famílias passavam seus dias trabalhando e vivendo juntas. “Nós passava de duas semanas assim, a gente tinha a casa da gente mas quando a gente ia para lá era muito legal”, conta dona Dilma Salgado, da comunidade de Boa Vista Culminã. O lugar também é considerado sagrado pelos quilombolas que faziam seus cultos e festas, mas nem sempre foi assim.
Dona Júlia Márcia, da comunidade Espírito Santo, lembra que houve um tempo em que só os seres da natureza podiam chegar ao barracão. Segundo ela, uma cobra grande habitava o rio e impedia mesmo os moradores de deslocarem-se livremente pelo Erepecuru. “Agora já é seco porque disque a cobra morreu mas no tempo que nossos avós moravam aqui isso aqui não secava assim, era todo tempo cheião, assombradão, conta”
Além das cobras grandes, no Erepecuru é normal ouvir relatos de botos que tomam forma humana, jacarés gigantes e visagens que habitam a floresta. Todo mundo conhece alguma história ou alguém que tenha visto esses seres encantados com os próprios olhos. E para proteger o povo de qualquer mal que eles possam causar, só mesmo um grande sacaca.
Na região do Baixo Amazonas, o sacaca é o grande curandeiro da comunidade, um tipo de pajé cujo poder vem de nascença. Segundo a pesquisa de Julia Sauma, sacacas também são seres encantados e aprendem tudo que sabem visitando o fundo do rio. Do Erepecuru nasceram dois grandes sacacas, o primeiro, Balduíno Melo, viveu até os anos 1970, e o seu sucessor, Chico Melo, também já falecido.
Eliane O’Dwyer, antropóloga pesquisadora das comunidades da região, escreveu na na coletânea Quilombos identidade étnica e territorialidade sobre os feitos notáveis de Balduíno, que era capaz de curar qualquer doença e até prever o futuro. Depois dele o último sacaca que viveu foi Chico Melo, pai de seu Daniel. Chico tirava todo seu conhecimento de dentro do rio.“Ele ia lá buscar poder para trazer e curar as pessoas”, lembra Daniel.
Hoje esses relatos podem parecer lendas aos ouvidos menos acostumados, mas para quem conhece o rio Erepecuru e suas comunidades sabe que são muito mais que isso, são a história de um povo mantida viva graças a pessoas como dona Deusarina, dona Julia e seu Daniel.
É sobre essas histórias que trata o novo documentário do UNI, último da série de vídeos sobre os quilombolas do oeste paraense. Confira agora!