Um museu quilombola no meio da floresta



Texto: Giovanna Consentini
Fotos: Fernanda Frazão

3 de julho de 2019

No rio Erepecuru, as comunidades quilombolas são ricas em cultura e tradição, por isso os moradores de Jauary estão se mobilizando para construir um museu vivo em suas terras

Imagine um museu com tudo que se tem direito, arte, artefatos, peças arqueológicas e muitos registros históricos sobre a cultura negra no Brasil, agora imagine esse museu localizado bem no meio da floresta amazônica. Esse lugar existe e está sendo construído na comunidade quilombola do Jauary, no território do Erepecuru, no oeste do Pará. “O museu é o resgate da nossa história viva”, diz o coordenador do projeto Daniel de Souza, de 61 anos. Na sua visão o museu vai ajudar na educação dos estudantes de Jauary e de várias comunidades, além de escolas do município e até de universidades: “Eu costumo dizer que nós somos um grande centro de pesquisa”, afirma seu Daniel.

A iniciativa é apoiada pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) da Universidade Federal do Amazonas. Para seu Daniel, o museu também deve atrair as pessoas para conhecer o território quilombola e todo o processo de luta dos que preservaram a floresta para que ela continue de pé até hoje. O plano de Daniel é que a comunidade desperte para o turismo de base comunitária. Assim, quem for visitar Jauary terá a oportunidade de conhecer a floresta verdadeiramente, com direito a trilhas pela mata, banhos nos igarapés, ver os bichos, e as cachoeiras e vivenciar o dia-a-dia de uma comunidade quilombola na Amazônia. Para isso seu Daniel ainda busca apoio e uma infraestrutura para terminar o Museu.





Museu Quilombola em construção na comunidade do Jauary

Pensado e criado pelos integrantes da própria comunidade, O Museu Quilombola já é um “museu vivo”, com a possibilidade de conexões através da natureza, história, ancestralidade também da cultura. E isso em Jauary não falta. Dentre as diversas atividades culturais realizadas na comunidade, a principal é a festa de devoção a São Benedito, padroeiro do Jauary.


A festa começa no dia 6 janeiro, quando a seca do rio não modifica o calendário. Os comunitários socializam e celebram sua fé em dois dias de festejo, que inicia bem cedo. No amanhecer do primeiro dia, os fiéis carregam a imagem de São Benedito por toda comunidade acompanhados de cantos e a luz de vela. Em seguida é distribuído o café da manhã a todos os presentes. Mais tarde o mastro é erguido, este é um dos símbolos da festa, quando derrubado ao final da tarde, a pessoa que pegar a bandeira branca que fica em seu topo, estará responsável pela confecção do mastro no ano seguinte. No final da tarde se inicia o Aiuê de São Benedito, uma espécie de congada amazônica difundida na região e que envolve música, dança e aspectos religiosos.

 

O pesquisador Marcos Alan Costa Farias, que conhece bem o Jauary, conta em sua tese de doutorado mais detalhes desse ritual. Segundo Farias, o cortejo começa com a chegada da Folia da Comunidade Boa Vista Cuminá, que realiza uma procissão fluvial trazendo a imagem de São Benedito. O santo é recebido por membros do Aiuê: Mantenedora, Rei e Rainha do Congo, Teolinda e Teolindo, Maria Cabeça de Cuia e Remador e os dois Porta-Bandeiras. Todos vestem vermelho e branco e saem em caminhada junto aos músicos e seus violões e tambores. Logo eles se reúnem em volta do mastro para cantarem e dançarem. A primeira música é um lundum, em que se apresentam o Rei e Rainha do Congo.  Vicente Salles escreve no livro O negro na formação da sociedade paraense que o lundum tem origem negra e está presente em várias manifestações “folclóricas”, “festas” e “folguedos” no Pará e Amapá. Ele cita a Marujada, em Bragança, o Marambiré, em Alenquer, Monte Alegre e Óbidos, o Aiuê, em Oriximiná e Óbidos e o Marabaixo no Amapá.

Jauary. Apresentação da dança Lundu.

Dilma Salgado, responsável por resgatar o lundum na comunidade do Jauary

Mas essa tradição nem sempre foi respeitada e chegou a ser proibida na comunidade do Jauary. “O nosso Aiuê congelou em 1935 por conta de preconceito”, lembra seu Daniel. A palavra aiuê, segundo o historiador Eurípedes Funes, significa festa no idioma africano kimbundu. Foi por causa desse caráter que a Igreja Católica impedia o ritual, com a desculpa de que se tratava de algo pecaminoso. Mas com a iniciativa de dona Dilma Salgado, que viveu a época áurea das festas nas comunidades, o Aiuê foi recuperado e está sendo passado para a próxima geração com o Aiuê Mirim.

 

Para quem mora no Jauary a identidade quilombola precisa ser preservada, por isso as festas, as danças, as ladainhas ocupam um significado importante na memória dos moradores. Assim também surgiu o Grupo Cultural Encanto do Quilombo. Fundado em 2010, o Grupo compõe suas músicas com instrumentos artesanais de madeiras e fibras da floresta construídos pelos próprios músicos. O repertório do grupo, que já tem um álbum gravado, é bem vasto, vai de carimbó, xote, até samba, sem esquecer o famoso brega paraense. Além as apresentações em Jauary e nas comunidades vizinhas, o Encanto do Quilombo faz sucesso na cidade de Oriximiná e já se apresentou até em Manaus.

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